Esqueçam a imagem que os religiosos deram para a Bíblia. Aliás, justamente por esse motivo muitas pessoas não leem essa obra e se privam de um rico conhecimento literário.
Ela foi escrita por aproximadamente 40 autores, contém 66 livros redigidos originalmente em hebraico, aramaico e grego antigo. E ao longo dos anos, os textos bíblicos têm sido objeto de estudo da História, do Direito, da Psicologia, da Antropologia, da Filosofia, da Linguística, da Sociologia e de muitas outras ciências. Mas aqui vamos tratar do seu valor para a Literatura.
Todos os grandes escritores liam a Bíblia: Freud, José Saramago, Nietzsche (ateus), Dostoiévski, C.S. Lewis, Fernando Pessoa, Machado de Assis… Ou você acha que o talento machadiano foi desenvolvido assim, do nada? Machado era muito dedicado à leitura dos grandes clássicos — inclusive da Bíblia. Sua obra é repleta de intertextualidade bíblica, por exemplo, nos romances Jacó e Esaú, Helena e em muitos de seus contos encontramos alusões a essa literatura milenar. E se observarmos a estrutura literária da Bíblia, vamos compreender a sua riqueza e diversidade textual:
Poesia: sabe-se que grandes poetas, como Fernando Pessoa, tiveram influências bíblicas. E se você ler atentamente os livros de Salmos e Cânticos, vai sentir — literalmente sentir — o efeito incrível desses poemas milenares!
Epopeia: Gêneses é considerado um livro baseado em relatos orais, que datam aproximadamente 6 mil anos antes de Cristo. As aventuras narradas em Gênesis inspiraram várias epopeias no mundo inteiro (por exemplo, Gilgamesh. Já fiz resenha desse livro aqui).
Gênero textual Jurídico: os escritos jurídicos nos livros de Números, Deuteronômio e Levíticos são fontes de inspiração para leis éticas e justas até os dias de hoje. (Pesquise.)
Gêneros sapienciais (ou didáticos): é o texto voltado para o raciocínio, equilíbrio e inteligência, como o livro de Jó (a história de Jó motivou a criação de muitas personagens no teatro, literatura e cinema), Provérbios e Eclesiastes. A propósito, Eclesiastes é de uma qualidade literária-filosófica arrebatadora!
Não é à toa que importantes escritores fizeram da Bíblia um manual de escrita e leitura, sem contar o seu valor pedagógico. Muitas pessoas se tornaram leitores através dos textos bíblicos. Veja só a declaração de um renomado pesquisador português:
“A Bíblia tem uma extraordinária beleza literária. […] São textos dotados de sofisticação estética e de grande profundidade semântica. […] Ela também tem grande valor histórico e linguístico, independente do seu valor religioso.” Frederico Lourenço, escritor, tradutor e especialista em literaturas clássicas.
Quem entende um pouco de arqueologia sabe o quanto é difícil achar e conservar uma obra literária tão antiga como a Bíblia. Muitos livros milenares se perderam no tempo, seja por causa da frágil composição material (papiros e pergaminhos) ou pela ignorância humana, que promoveu guerras destruindo muitas cidades com suas bibliotecas. (Imaginem as obras que se perderam? É de doer o coração…)
Eu não sei se você é crente ou descrente, mas, provavelmente, deve apreciar uma boa literatura (senão, não estaria neste blog rs), e a Bíblia não é só um livro — é uma biblioteca inteira! É o maior best-seller do mundo! Portanto, deixe de lado o estereótipo religioso dado a essa obra e siga o hábito dos grandes escritores, leia a Bíblia.
“Eu confesso que a majestade da Bíblia me abisma […] e enche o meu coração. Os livros dos filósofos com toda a sua pompa, quanto são pequenos à vista deste!” Jean-Jacques Rousseau
Elaine Rodrigues
Professora de Literatura
Autora dos livros Desfragmentos e A dracma perdida
E-mail: eredigindo@gmail.com
Conhecimento complementar:
Mais sobre a estrutura textual da Bíblia
Confesso que eu gostei da abordagem inicial. Na afirmação: “Esqueçam a imagem que os religiosos deram para a bíblia”, distanciou-nos do discurso religioso; e no desenvolvimento do texto, fomenta análise literária, de forma a observar o estilo sem envolver a hermenêutica religiosa. 👏👏👏 Muito bom
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Puxa, Raul! Nem eu sabia que tinha escrito tudo isso! Você é ótimo em análise textual. Obrigada pelo rico comentário!
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Elaine, acredito que você tocou num ponto fundamental ao destacar como é difícil uma obra literária tão antiga sobreviver. No caso da Bíblia, outras questões estão envolvidas (como a ascensão do cristianismo desde Constantino). Mas o valor literário, que você explicou tão bem, certamente contribuiu para sua preservação. E, deixando de lado a questão religiosa, seu texto mostra como este livro é diversificado. Mais que isso: são 66 livros – algo impressionante! Eu nunca tinha olhado para a Bíblia com este foco literário. Excelente texto! P.S.: Que tristeza pensar em todos os textos que foram perdidos ao longo do tempo… e pensar na Biblioteca de Alexandria nos tempos de Cleópatra…
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Obrigada, minha amiga-escritora, por completar meu texto com essas informações. 😊
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Isso se deve a passar a adolescência lendo Marion Zimmer kkkkk
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Parabéns, Elaine. Texto maravilhoso!! A bíblia é realmente fascinante.
Como pessoa conhecida, Dom Pedro ll também a lia MUITO e a achava fantástica em vários sentidos. Segundo as palavras do próprio:
“Eu amo a Bíblia, eu leio-a todos os dias e, quanto mais a leio tanto mais a amo. Há alguns que não gostam da Bíblia. Eu não os entendo, não compreendo tais pessoas, mas, eu a amo, amo a sua simplicidade e amo as suas repetições e reiterações da verdade. Como disse, eu leio-a quotidianamente e gosto dela cada vez mais.”
Uma outra curiosidade é que no período de guerras, as nações pretendiam destruir a maioria das unidades de informação dos países oponentes, e na maioria dos casos com a justificativa de apagar a memória do país e com isso a sua identidade.
Indico dois livros:
“Entendes o que lês?” de Gordon D. Fee e Douglas Stuart.
“História universal da destruição dos livros: das tábuas sumérias à guerra do Iraque” de Fernando Biez.
Um beijo. Vou compartilhar esse texto!!!
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Amei seu comentário! A citação de Dom Pedro ll e a contextualização da Bíblia durante as guerras foram super pertinentes! Sem contar as indicações dos livros que pretendo ler. Obrigada, inteligente Rebeka!
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Se não me engano, Northrop Frye dizia que todos os enredos da literatura ocidental têm seus arquétipos já na Bíblia, o que se soma à exortação que há no texto.
Encontrei o post ocasionalmente enquanto eu procurava por blogs no WordPress, fiquei encantado, curti e tornei-me seguidor na esperança de receber outras coisas tão bem escritas como esta.
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Você tem razão, a Bíblia tem sido grande fonte de inspiração para escritores ocidentais. Eu realmente fico feliz por você ter gostado. Obrigada!
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Realmente a Bíblia é fascinante!!
Uma das matérias que mais gosto de abordar nos seminários em que leciono é bibliologia.
Parabéns pela iniciativa!
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